A Questão do Logos em Heidegger e Lyotard: A urgência de um “outro pensar” na condição pós-moderna

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RESUMO

A intenção deste escrito é, sucintamente, pensar algumas linhas da “condição pós-moderna”, na obra do francês Jean-François Lyotard e, com ele e a partir dele, questionar se e onde houve (ou não) reais rupturas na forma de pensar herdada da modernidade. Nisto, tensionamos, com Heidegger, o quanto essa suposta ruptura ainda mantém elementos basilares do logos moderno, principalmente no que se refere à questão da técnica. Criaram-se rachaduras, tensões, algum conflito; mas o modo de pensar moderno ainda se impõe nesta tentativa de ruptura que se chamou de pós-moderno, e isso parece ocorrer enfaticamente pelo protagonismo da técnica na estruturação e legitimação do conhecimento filosófico e científico. Contra isso, Heidegger vem com o esboço de um “outro pensar”, que vá para além nesse questionamento e na tentativa de destruição e ruptura: o que nos “pode salvar” parece ser a refundação de um logos, um método novo de pensar, que partindo da compreensão do perigo extremo que nos oferece a armadilha da técnica moderna, vá em frente, continue, siga essa destruição e elabore uma reconstrução a partir dos escombros.

INTRODUÇÃO – A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA SEGUNDO LYOTARD

A história sugere que a ciência e a tecnologia, embora hoje casadas, passaram por um longo e pouco entusiasmado namoro.

Elas cresceram de forma independente, com uma desconsiderando a existência da outra ou desdenhando sua presença. Quando alcançaram a puberdade – a Revolução Científica no caso da ciência e a Revolução Industrial no caso da tecnologia, começaram um comportado namoro.

O casório, quando por fim veio acontecer, foi um casamento de conveniência e necessidade, sem muito amor envolvido. Até então, tinham tido encontros bastante ousados e secretos, propiciados por necessidades militares. As cerimônias realizadas poderiam ser chamadas de um casamento relâmpago, e o casal, como era previsível, nunca foi muito feliz.

Cada parceiro manteve uma boa cota de independência, embora recentemente tenham tido problemas de identidade. Constantemente se engalfinham sobre quem se dedica mais à vida conjugal. Discutem sobre responsabilidades mútuas, sobre a educação de seus filhos e, como era de se esperar, sobre o orçamento doméstico.

É um casamento bem moderno. Ciência e tecnologia vivem independentemente, mas de forma coordenada, com uma conta bancária conjunta e um único carro. Frequentemente discutem sobre o divórcio. Contudo, ele é invariavelmente rejeitado, porque o escândalo iria prejudicar a imagem pública das duas, e por causa, desconfio eu, dos indiscutíveis prazeres e conhecidas frivolidades da cama.

(Melvin KRANZBERG, 1989. Traduzido em OLIVEIRA, 2010, p. 71).

Lyotard, pesquisador francês, professor de filosofia e debatedor ilustre do marxismo, escreve sua principal obra em 1979. Entre as mais diversas formas de pensar, ver e teorizar o que os pensadores da época viam surgir, “A condição pós-moderna” de Lyotard se faz notável por partir de uma hipótese central bastante original: a mudança do estatuto do saber no momento em que as sociedades entram em uma era pós-industrial e as culturas passam a se caracterizar como o que se chamou “pós-moderno”. Essa mudança de estatuto do saber é tratada a partir do “problema da legitimação”, no que ele vê a principal mudança da compreensão do saber na modernidade para uma pós-modernidade; os dois relatos de legitimação do saber na modernidade, o de emancipação e o especulativo, chegam às suas falências.

Em seu lugar, o pós-moderno vai tentar com novas formas de legitimação desse conhecimento e novas formas de pensar a ciência, propondo um legitimar pela linguagem e pela paralogia; mas a tentativa parece definhar no que ele denuncia como uma forma de legitimação técnica, que entrega seus discursos e sua finalidade, seu telos, para o desempenho e a performance meramente técnicos, em um sistema cooptador.

O autor também constata algo importante: toda a transformação estrutural desta forma de tratar o conhecimento e o saber não foram consequências apenas das guerras mundiais ou da reconstrução europeia. Tudo já vinha de um processo iniciado já no fim do século XIX, junto com a evolução das condições de produção de saber e da evolução técnica. Trata-se, portanto, de um período histórico que corresponde a dois finais de séculos, duas viradas temporais comportando em si uma continuidade nas transformações culturais, sociais e filosóficas.

A modernidade pensava e propôs seu ideal de conhecimento legítimo baseado em dois grandes relatos. No relato da emancipação, ideal da Revolução Francesa e do Iluminismo, a legitimação estaria subordinada ao bem da Nação, que buscasse sua dignidade e liberdade. Sendo uma forma de legitimação mais voltada à política, o conhecimento seria o meio para a obtenção do fim desejado: a sociedade livre e o Estado soberano. Complementando-se, no viés filosófico, o relato especulativo tem como origem a fundação da Universidade de Berlim, com Humboldt, Fichte, entre outros pensadores que vão propor o saber especulativo, na influência idealista, como o “saber dos saberes”. O conhecimento especulativo seria tanto um meio como também o próprio fim, sendo um pressuposto para se compreender aqueles fins que a emancipação política propõe. O ideal é uniformizar o saber e buscar regulamentá-lo de forma hierárquica.

A fragmentação hierárquica das ciências se desenvolve – já em um período histórico pós-industrial, de valores pós-modernos – para uma segmentação e departamentalização, enterrando aquela ideia do saber universal, que queria ser percebido como um todo. Estabelecem-se requisitos para que um saber seja ciência: se não cumpri-los, que vá ao banco dos réus, acusado de ilegítimo. A denotação e a prescrição, características destes relatos de emancipação e especulativo se perdem quando buscam afirmar enfaticamente “o que é”, e não o que “pode ser”, perdendo o sentido de guia político e se colocando como alvo, como fim posto – ou imposto – a priori.

Os grandes ideais modernos perdem credibilidade, portanto, no momento em que as grandes metanarrativas com as quais seu conhecimento e saber eram legitimados parecem sufocar demais. Sempre fortes, retumbantes, sublimes, fáusticos, começam a ser vistos com olhares desconfiados. A liberdade como princípio filosófico através do acesso ao saber e o aufklärung e a bildung como processos prontos, agindo juntas na condução da formação do sujeito esclarecido que vai trazer o progresso à Nação perdem sua magnificência por não aceitarem o devir, o dinamismo e a volatilidade da vida e da cultura, que aparecem em um momento onde a linguagem, locus primordial do devir e dinâmica por natureza, atuará na virada paradigmática da filosofia.

Nesta virada, os metarrelatos modernos nada mais serão que fábulas, pois pretendem se autolegitimar como suposta racionalidade universal. A descrença é geral nos conceitos de justiça e verdade já instaurados a priori; que muito prometiam e trouxeram não mais do que insuficiências. A crise destes metarrelatos é então a crise do ideal moderno de ciência e também da ideia de universidade que o expandia e difundia.

O conhecimento pragmático, quantitativo, calculável e refém de provas concretas torna extremamente difícil a identificação do momento onde começa o científico e termina o técnico. Há uma confusão entre ciência e técnica, não existe mais distinção entre elas. Afirma-se ainda, neste período entre a revolução industrial e o início de um “pós-moderno”, um novo desdobramento do desenvolvimento estético da técnica, e com certeza o mais importante deles, que, convenientemente, se chama de tecnologia. A modernidade incorpora ainda mais a técnica – que agora é tecnologia, desenvolvida, afirmada e considerada responsável pela criação de instrumentos – em seu conceito de ciência. A tecnologia é considerada a produtora de instrumentos que facilitam ao homem ter acesso ao conhecimento.

A mentalidade prática e imediatista da ciência influenciada pelo positivismo traz em si mesma uma valorização extrema da técnica, já que ela é, agora, em si mesma, a produção, a coisa, a causa. A ciência se substancializa em procedimentos e artefatos tecnológicos. Oliveira (2010) vê o início desse processo ainda no século XVII, com Francis Bacon. Lyotard também detecta a presença desse caminho ainda na modernidade e, ao demonstrar o que seria o “pós-moderno”, parece revelar que existe a ruptura na forma de ver o saber e a ciência, mas a dependência técnica não se altera; ao contrário, cresce.

O que veio a se chamar de pós-modernidade tem uma proposta de trazer para o humano a essência da linguagem. A falência dos relatos da modernidade é uma reação à crise da confusão entre ciência e técnica. O pós-moderno vem então sugerir uma nova forma de legitimação do saber, que Lyotard chama de paralogia. Legitimar pela paralogia significa submeter as regras e as prescrições, tão queridas à ciência denotativa, a uma renovação, de forma a favorecer a dinâmica dos enunciados e os jogos de linguagem. Buscar um tipo de legitimação científica autopoiética, da linguagem enquanto produtora de enunciados que vão se enfrentar nos jogos linguísticos. A ciência precisa ser compreendida como apenas uma das formas de se dizer o conhecimento. Uma das expressões do saber. Pode sempre ser ultrapassada, uma sobreposição de teorias.

O LOGOS PÓS-MODERNO EM HEIDEGGER E LYOTARD

Emergem na filosofia teorias que vão trazer o devir, as estruturas interpretativas e as tensões hermenêuticas; que vão colocar os fáusticos ideais, tão sólidos e puros, na esfera do questionamento, da curiosidade – em uma palavra, da dúvida. A legitimação das regras desses jogos de enunciados não é feita por elas mesmas. O acordo é exterior, feitos por quem joga. São o agón, o conflito, a força do dissenso, e não mais o consenso ou a síntese dialética, os juízes da partida.

Pode-se dizer que essa tentativa de destruição, a partir do protagonismo da linguagem, da pretensiosa ética universal, ainda está em andamento. Mas o esforço da tentativa de ruptura na questão da linguagem e da negação à universalidade científica não teve, por enquanto, o ânimo e a força necessários para questionar a primazia da técnica e da tecnologia no estatuto do saber.

Ao negar a submissão dos particulares a um universal, a condição pós-moderna parece nos guiar ao outro extremo: uma ode à individualidade, a uma subjetividade isolada, que parece ser perpetrada, talvez até imposta, pelo sistema técnico, que vige em toda a sua força. Perde-se um tanto a ideia de coletividade, o telos coletivo que afinal era a promessa iluminista. O que vai construir os vínculos sociais nesses jogos de linguagem “cooptados” pelo logos técnico que mantém seu predomínio é o próprio “sistema”, em busca de seu desenvolvimento e melhoria.

Esse modo de pensar e agir se aproveita daquela deslegitimação dos relatos modernos e usa a sua habilidade potencial de adaptação para afirmar o poderio técnico. Se a ciência não pode mais se autolegitimar, o capital pode propor novos meios de legitimação. Se a linguagem se torna o vínculo social, o capital pode impor suas regras para a comunicação. Se a filosofia especulativa fracassou, o sistema pode propor o domínio ainda mais forte da técnica, que oferece respostas em prazo curto. Se os sábios agora são cientistas, o sistema técnico cria a figura dos experts, aumentando ainda mais a fragmentação do conhecimento em busca de controle. Há agora um pessimismo generalizado? Ora, que venha a ideia do progresso técnico e do bem-estar tecnológico.

Em rápidas palavras, o sujeito cognoscente se exterioriza completamente do conhecimento. Não é mais ele o produtor, o poeta do saber.

A velocidade das informações tecnológicas, principalmente no seu desenvolver como informática, vão impor as suas demandas à pesquisa científica e à transmissão dos conhecimentos. A necessidade de agilidade, de facilitação, de acesso, vai exigir das pesquisas e do saber que se transformem em linguagem-máquina. O saber em si, o conhecimento, não é mais importante do que o como acessar, como navegar, como organizar. O “como” se sobrepõe ao “o que”. Em outras palavras, diz Heidegger, a cibernética toma de golpe o lugar da filosofia. (Heidegger, 1966).

Se o saber se submete à técnica, assim também o será a sua legitimação. Em perfeita sintonia com um sistema econômico que se torna hegemônico pelo controle, o conhecimento cai em um processo de reificação em mercadoria. É força de produção, elemento econômico, tem papel importante na disputa de poder econômico, na competição mercadológica. Sua legitimação então não pode se dar de outra forma senão pelo desempenho, pela performance, pela sua forma de mão-de-obra.

No âmbito político, as palavras decisoras escapam às mãos da classe política: é atribuída e entregue aos “experts”, especialistas em cada área fragmentada daquele saber que um dia quis ser um todo. Discussões e debates de posições, de teorias e hipóteses são cada vez mais raros. Reina a competição por dinheiro, por investimento, por poder de divulgação, por influência, arrebanhados por quem tenha melhor performance, melhor desempenho pró-sistema. A educação tenta, mas dificilmente fugirá da regra. Professor e aluno, em um contexto de saber exteriorizado, trabalham de forma igual, com “informação completa” (Lyotard, 2011, p. 129). Chegará o dia em que não haverá o que o aluno esperar ou desejar de seu professor. “A pedagogia na sociedade pós-moderna não desaparece, mudam-se os seus métodos. Ensinam-se não os conteúdos, mas o uso dos terminais” (p. 129). O jogo de linguagem já está colocado. Basta que se escolha a ferramenta a se utilizar para ganhar esse jogo.

Inegavelmente, assumiu-se um novo patamar ao logos; dizer que foi oferecido um protagonismo ao logos. Mas não realizou-se ou elaborou-se sua real transformação. O logos permanece enfaticamente apofântico, pois ainda vai se apoiar numa forma de pensar técnica, além de ser por ela também legitimado.

A proposta de Lyotard, em suas palavras uma “agonística geral dos discursos”, parece ser uma proposta de real transformação, da refundação de um logos, não a partir de um total desprezo pelo antigo, mas partindo de seus pilares, de seus escombros, buscando também a inspiração da virada paradigmática para fazer esse jogo agonístico. Até por isso, desconfio e ensaio dizer que tenha sido influenciado por Heidegger, pois na sua forma de expor o que chama de um “outro pensar”, o alemão deixa claro sua inspiração originária no agón, no conflito e no embate que dá uma forma ao devir contínuo – inspirado, por sua vez, em Heráclito, filósofo do agón – que provavelmente inspira também Lyotard.

Heidegger, nos seus primeiros pensamentos, parece então também pensar em algo nesses termos, no sentido de destruição dos paradigmas metafísicos da tradição ocidental na filosofia. Partindo da tradução de Giacoia Jr. (2013), os dois momentos que Heidegger pensa para essa ultrapassagem à metafísica seriam a superação (Überwindung) e a distorção (Verwindung) de seus paradigmas. Superar é realizar mesmo a destruição de suas categorias. Já com relação à distorção, o significado vem com maior profundidade; ele quer dizer algo como restabelecer, curar – nas palavras de Gianni Vattimo, “denotar um ultrapassamento que, na realidade, é reconhecimento de vínculo, convalescença de uma doença, assunção de responsabilidade”. (apud Giacoia Jr, 2013, p. 42). É impossível negar que os pensadores da virada paradigmática, como Dilthey, estavam inspirados de certa forma pela tradição. Heidegger, que também representa essa virada, também não pode fugir; e é nesse conflito do pensar que vai poder crescer um outro logos.

A superação e destruição da metafísica e, portanto da tradição filosófica ocidental, não poderá partir do inteiramente novo, do imaginado, de algo transcendente. Será necessário que ela parta das entranhas da própria metafísica, de suas origens, de seus grandes pensadores, de seus gérmens. Giacoia Jr, talvez inspirado por Lyotard, chega a usar o mesmo termo do autor francês, dizendo que essa superação “só pode ser feita de dentro da história da metafísica, pelo diálogo agonístico (…) com os grandes pensadores, eles próprios herdeiros e transmissores do legado espiritual da tradição” (p. 42-43).

O FIM DA FILOSOFIA E A URGÊNCIA DE UM “OUTRO PENSAR”

Então, colocamos, que as propostas se conectam. Lyotard, escrevendo mais de cinco décadas depois do primeiro Heidegger, parece ver na pós-modernidade uma proposta desta desconfiança que se torna vontade de destruição e reconstrução frente aos ideais modernos, mas que é cooptada pela mentalidade técnica própria do capitalismo industrial contemporâneo. Isso constatado, a proposta é que a virada para uma filosofia da linguagem elabore e estimule uma agonística geral dos discursos que pense a superação dessa cooptação.

Heidegger começa a tratar dessas questões cinquenta anos antes, pensando uma metodologia similar. Tanto que, já na fase mais tardia de seu pensamento, buscando a história da verdade do Ser, ele vai se dedicar à questão da técnica como o próprio esquecimento do ser que tanto denunciou, verificando que o caminho fatalmente perpassará o confronto agonístico com o pensamento metafísico, que busque e proponha a destruição deste modo de pensar e uma refundação do pensar.

A técnica, para Heidegger, é muito mais do que a sua compreensão instrumental. Em termos breves, Heidegger vai buscar o originário da técnica no mundo grego. A partida se dá no texto “Introdução à metafísica”, quando inspirado na “Antígona”, de Sófocles, ele detecta o sentido poético que o grego conferia à técnica – techné. Técnica e arte ainda não eram conceitos distintos, sendo, mais do que sinônimos, atividades e ações realmente gêmeas, intrínsecas uma a outra. A técnica era em si um saber, o saber que era capaz de produzir algo. Não somente no sentido de artefatos ou ferramentas, mas também em um sentido ético-político de produzir Ser, no fazer autêntico.

Contudo, no texto em que realmente se aprofunda no tema, “A questão da técnica”, conferência de 1953, o alemão vai detectar também este saber como o início de um processo que poderia conduzir a produção e o fazer a uma inautenticidade, um mero fazer reprodutor, que direciona o ato produtor e o pensar anterior ao plano unicamente ôntico. Este é o ponto onde a técnica moderna se instala e vai buscar controle, ao impor, propor e solidificar, fugindo de sua essência como techné. O fazer moderno vai tornar a si mesmo ponto de partida, desprezando a reflexão anterior, o momento ético-político que estava contido na produção enquanto techné. A distância de sua essência como techné leva a técnica moderna e a sua entificação como tecnologia a um novo conceito, uma nova essencialização do termo, que destrói a techné como conceito e cria para si uma nova estrutura. A essa estrutura, Heidegger chamou de Ge-Stell1, um neologismo que quer definir o modo como o homem moderno, ao buscar se assenhorar da natureza e impor seu controle sobre o mundo, termina encontrando-se disponível às demandas técnicas e tecnológicas.

A técnica, em sua essência agora como Ge-Stell, vai ainda impor ao homem a completa separação de sua irmã gêmea enquanto techné, a arte, forçando-a a uma definição meramente instrumental, como algo que o homem tem à mão, negando o pensamento que a veja como questão, como um modo de ser, uma forma de aletheia, uma forma de acontecimento do ser.

Na entrevista concedida dez anos antes de sua morte, em 1966 – ainda treze anos antes da obra de Lyotard – Heidegger parece ver o total domínio da técnica moderna sobre o homem, a facticidade completa do estado técnico, decretando inclusive o fim da filosofia – e ainda, em frase já famosa, que “já só um deus nos pode ainda salvar”. Mas, ao estudar com cuidado e atenção suas falas nesta entrevista, fica a impressão de que o autor vê ainda que há o que salva a se buscar, que ele, por força retórica, talvez tenha decidido chamar de deus. Trata-se do que ele chama de “outro pensar”. Uma refundação da tarefa da filosofia, o fazer emergir um logos que, ao destruir, se construa como o novo, dinâmico e consciente de sua provisoriedade. Algo como o que o logos moderno realizou com sucesso em relação à techné, de forma equivocada apesar de intencional, buscando eliminar a provisoriedade e possibilidade de modos de fazer.

No melancólico fim de sua tarefa máxima, o modo de pensar corrente pode permitir, ajudar, dar suporte, a que isto seja compreendido: o que pode salvar é o estar-disposto a procurar e construir este “novo pensar”, que vá retornar e compreender a origem e a história da metafísica e, quem sabe, espantar-se com a estrutura da Ge-Stell, essa composição que situa o homem e o provoca a agir somente a partir do apelo pelo fazer técnico. Somente este novo pensar, nas tentativas de construção desse logos renovado, será capaz de dizer como o homem está usado, como só imagina dominar e se encontra dominado. Neste possível espanto, podem residir as possibilidades do poder-ver o que se vela no breu da Ge-Stell.

Na entrevista, Heidegger diz com todas as palavras que a filosofia realmente já não é capaz de ser, em si mesma, efetiva nesta reconstrução, já que seu papel, pensado como descrição, esclarecimento ou iluminação já foi assumido pelas ciências, que, como conclui Lyotard, são parte integrante do estado técnico. Como já dito, para o alemão a cibernética já agora ocupa o lugar da filosofia. Esta filosofia, segmentada em suas várias particularidades é nada mais que parte do domínio técnico, é integrada ao logos corrente.

Ao descrever isso, Heidegger diz que a filosofia chegou ao seu fim e precisa rapidamente aceitá-lo, pois só assim poderá ir ao âmbito de uma refundação, uma reconstrução a partir de seus escombros. O pensar, ele diz, não tem mais como agir diretamente no mundo; será nesta refundação que o novo logos vai construir essa mediação, que é intrínseca ao pensar, na figura de um pensamento novo. O estar-disposto a participar dessa refundação é o que salva. Só essa disposição e esforço poderá ser a libertação do ser preso ao ente. Essa é a possibilidade que brilha dentro da opacidade do mundo técnico, e é a ele que temos que nos devotar, no pensar de outro modo, no poetar, na beleza e na infinidade de possibilidades da linguagem. Sendo uma “fabricante” de logos, uma artesã da linguagem, a filosofia pode iniciar sua recriação sendo anfitriã essencial da paralogia.

O “devoto que se mantém em atitude de abertura” não é mais filósofo. Ele é o arquiteto do novo logos, do outro pensar, de um novo método de pensar, que não apenas quebra com a tradição metafísica, mas a destrói, para que assim possa ver que o início de seu trabalho está ainda ali, nas ruínas. O e-laborar nesta construção estará ali originado, mesmo que não seja ainda, de nenhuma forma, visível, pois serão apenas pedaços.

O que fazer, enfim, para que nos surja aos olhos o re-velar desta construção? Ora, já está dito: pensar! É o pensar que poderá levar à compreensão da necessidade do estar-disposto a pensar ainda mais, e, de repente, de maneira nova. A teoria já é práxis, ele é o agir, e esse agir em busca da efetivação deste “outro pensar” reside, ou pelo menos assim parece, no que Lyotard chamou de “agonística geral dos discursos” e que Heidegger afirma simplesmente como o “questionar”. Esse perguntar, questionar, inquirir, escrutinar, é o que cria a tensão necessária ao agón, esse conflito entre o posto e o que há-de-vir.

Cremos que pode-se dizer então, ou ensaiar, enfim, que a pós-modernidade está sendo, de forma contínua, pensada e construída, mas sem a necessária crítica ao modo técnico de pensar. No modo de ver a questão da técnica, ela em nada se difere do modo moderno. Está mantido o modo técnico de operar. Apesar de buscar afirmar uma pluralidade, o faz a partir da eficácia ou de desempenho técnico. Há de se respeitar seus pressupostos, mas rejeitar o seu rebaixamento e submissão à necessidade de uma aprovação técnica ou funcional.

A refundação de um logos, no império da técnica moderna, será o fundamento para se pensar uma real e completa pós-modernidade. Uma pós-modernidade deve ser, antes de tudo, uma pós-tecnologia.

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1 Ge-Stell, como dito, é um neologismo criado pelo autor. Em tradução livre, seria algo como compor, armar, algo que estrutura ou oferece suporte. Heidegger quer passar a ideia de uma composição ou estruturação técnica que tem como método o dispor da natureza como matéria-prima e que se “aproveita” do apelo que é natural ao homem por desencobrir para oferecer-lhe o método técnico como única possibilidade.

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