EDITORIAL – Epistemologia e suas possíveis interseções sociais
Em 2003 o então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, iniciou uma guerra contra o Iraque, sob os argumentos no qual Saddam Hussein teria posse de diversas armas de destruição em massa e que o mesmo abrigaria integrantes da Al-Qaeda. A questão da existência dessas armas foi questionável, mas levou a uma guerra que culminou com a retirada de Hussein do poder e sua prisão – posteriormente condenado à morte pelas suas condutas naquele país.
É interessante mostrar que a existência – ou não – daquele arsenal jamais visto, é uma questão acerca de uma ontologia. O questionamento sobre como o serviço de inteligência chegou a esta resposta é epistêmica; definir como se chega a uma conclusão, como esta que ilustramos, ou como ela se sustenta, são viéses epistemológicos.
Definir se o o que temos como conhecimento que temos sobre sua existência é de fato um conhecimento, é uma tarefa epistemológica; mas também é possível estudá-la por viés social. Há portanto, nas coisas do mundo e da história do mundo, a intersecção das camadas de estudo – podendo uma delas, a critério de como as estudamos, estar centrada como uma metodologia.
No mundo de 2017, já não tão perto dos idos de 2003, ainda temos questões de atualidades que se relacionam ao critério do conhecimento da existência de ontologias – como obtemos ou justificamos o conhecimento sobre tais objetos: objetos ontológicos e políticos. Podemos referir aos objetos políticos como aqueles fatos com clara influência em decisões políticas.
A reforma da previdência, trabalhista e outras poderiam suscitar debates acerca da existência de objetos – ou falta deles – e características que deveriam motivar ações da administração pública em torno das mudanças legislativas e práticas legalizadas: a existência de rombo previdenciário, ou não; a existência de um crime em um impeachment, ou não – que friamente analisadas não corresponderam às alegações individuais que cada parlamentar usou na tribuna ao mostrar-se contra ou afavor no tribunal de impedimento. Tribunal este que deveria ter levado em consideração a existência ou não ontológica de tais crimes (muitos votaram pelos mais diversos motivos, o que gerou diversas chacotas do como esse tribunal foi levado a cabo).
Estes são alguns exemplos onde a ontologia, onde a existência – não no termo existencialista, mas em uma aproximação mais realista – de objetos ou características são decisivas para a tomada de decisões públicas e, em outras instâncias, privadas.
Vivemos um momento onde as delações são tomadas como importantes instrumentos para alcançar o estado de coisas que permeiam crimes e contravenções – são importantes provas testemunhais, não há dúvidas; mas que podem levantar questões sobre a validade, a rigidez de tal conhecimento testemunhal e a real aplicabilidade de todas as delações. Em sentido mais estrito, elas devem ser verificadas, para que não ocorra o uso assistemático e irreal deste dispositivo. Há no entanto o impacto social – como ocorre na mídia – que pode ser diverso da verdade que ele carrega. É uma importante questão a se levantar a respeito, sem a pretensão de invalidar o uso de tal dispositivo, mas de pensar o uso jurídico e o que está além da possibilidade jurídica. É obvio que neste prefácio editorial não se pretende afirmar quais são ou como quais tipos de objetos testemunhais devam ser levados em consideração: mas como uma ilustração do que é passível que ocorra.
Análises sobre o status ontológico das coisas que nos permeiam, sob o viés de como podemos conhecê-las, e sobre como justificamos a atribuição de conhecermos tais status é uma das vertentes possíveis da epistemologia, mesmo sob análises menos tradicionais à uma estrutura imaginada do que seria “a epistemologia”; são análises interseccionais à uma considerada epistemologia tradicional.
Esta revista presta-se ao serviço de fornecer trabalhos que desenvolvam-se tanto no âmbito mais tradicional da epistemologia, quanto trabalhos que possuam caráter interfacial à esta epistemologia tradicional. Onde é possível uma análise sociológica ajudar a definir, por exemplo, critérios de como conhecemos, ou pensamos conhecer as coisas.
Neste número, a Revista Epistemologia, leva aos leitores dois artigos que utilizam desta faceta sociológica; procurando, assim, dar voz a uma diversidade maior de pesquisas. Agindo num mundo desde sempre familiar: perspectivas etnometodológicas sobre ação social nos mostra uma interpretação dos fenômenos sociais, tangenciando as relações epistêmicas. Também com cunho sociológico temos o Indivíduo, comunidade e ascensão social: a falta de reconhecimento no espaço público como forma de naturalização das desigualdades e marginalização social que demonstra como o reconhecimento em espaços públicos moldam desigualdades sociais, por vezes tomadas como natural.
Arnaldo Vasconcellos